sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Singela homenagem ao fado

O barco navegava rumo ao Atlântico.
Não era um navio qualquer.Igual ou maior que todos os outros.Era uma embarcação fantasma.O casco era verde de podridão,as velas farrapos e os tripulantes esqueletos.Com alma.Ouvia-se um cantar baixinho...
Tinham deixado a costa de Portugal há cerca de um mês.Sentiam-se perdidos na imensidão da água.Azul.Tantas vezes batida pelo vento que varria o convés de ponta a ponta.As noites eram tenebrosas.Muitas.Ouvir o bater do casco nas ondas e contra elas era muito mais que um risco de vida.Uma oferta.
Queriam alcançar o Brasil,terra lendária,fonte de riquezas várias.
Açucar ,ouro,tabaco...Ponto de triângulo de escravatura.Onde ,na margem de um rio, um português tinha gritado e afirmado a liberdade.A Independência.
A ousadia estava debruçada sobre o mar.Sentiu baterem-lhe nas costas.Ela era um ser diferente entre tantos   outros  seres iguais.Aparentemente iguais,entre si.Era a aventura que a chamava.Esta tinha a forma de uma galáxia brilhante.Rolava de proa a popa.Sentaram-se para conversar já que o tempo era de calmaria.
-Como te sentes?
-Só.
-E eu? Não sou tua inseparável companheira?
-Demais...
-Que farias sem mim?
-Nunca pensei nisso.Reconheço-me como ousadia.Sou indispensável.Sem mim,nada serias...
-Seria ,sim!Sou princípio...~
A coragem chegou.Espreitou.Escutou.Por uns momentos.Tinha uma forma indefinida.Parecia um facho de luz saído de uma mão.Interrompeu a conversa que tinha estado a ouvir encostada ao mastro maior.
-Pareço parecida contigo,ousadia!Não o sou.Estou revestida de bom senso
-Bom senso?!Isso seria a minha própria negação!
-Pensas que sim?Pois a História identifica-me e elogia-me.Sou a antítese da cobardia.Conduzo a sociedade.
-Não te aproximes!Não sou temerária!...
-Não me aproximo porque não te quero destruir .A minha força esmagar-te-ia...
E apagou-se.
Uma nuvem imensa cobriu o céu.Baixou sobre a forma de um suave nevoeiro.Sentou-se no chão.Parecia leve.
-Eu sou o amor!Maior que vocês!Enganam-se quando me chamam de ousadia,aventura ,coragem...Na verdade sou eu que vos faço ser.Quando querem a alguém ou alguma coisa lutam...porque a desejam...entregam-se...Sou eu,apenas eu...
A solidão estava escondida num buraco escuro.Apareceu de negro vestida.Ao ouvir as palavras do amor afirmou em tom melancólico mas firme:
-Bem te conheço ,amor.Se és causa eu sou efeito.Sem ti eu não seria tão forte,tão magoada.Quando não estás eu irrompo.Com tal violência que do pano forte das velas que nos guiam faço os farrapos que aqui estão!...
O amor indignou-se.
-Não sou razão de dor mas de paz!...
-Enquanto estás és ternura.Quando foges,destruição.
-Segurem-me!Valorizem-me!
-Nem sempre o mundo nos deixa.O egoísmo aparece em forma de estrela.A desordem em forma de lei.A corrupção em forma de poder...
-Co-existo com tudo isso.Por que me querem esquecer?!aqui eu sou lembrança,sou passado.
-Aqui tens outro nome:és a saudade!
-Que só existe para os portugueses.Talvez fosse mais uma descoberta da Expansão...
-Onde nasceste,não sei.Reconheço-te no tempo.Eu e saudade somos a tristeza.
-Estás confundida,solidão.Não posso ser saudade porque vivo.
-A saudade é uma forma de amor.Não descrimina.Aparece de mansinho e é indestronável.Tem um perfume próprio.
Com estas palavras o amor ficou a pairar no ar pensativo.
Uma guitarra deu os primeiros acordes.Talvez chorasse baixinho.Talvez fosse a voz das lágrimas dos marinheiros.Dos amantes.O som ia aumentando mais...um pouco mais...mais...O navio continuava a navegar.Os sentimentos juntaram-se num poema.Ali,cantou-se o fado.
E foi levado ao Mundo.
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